Foi um susto grande o dele, e fez algo bestial urrar para
fora como uma rainha louca em perigo. Foi um susto grande o dele e fez de
bestial e louco, uma rainha que corria às pressas, pregou peças e a manga da
camisa desabotoada. Foi um susto grande e uma vontade louca de correr para fora
ou para longe de todas as cenas que nunca viveriam juntos. Berrou que ela era
tudo, menos obs-cena, e rasgou as
folhas, e colocou na boca, e mastigou, mastigou e cuspiu a gosma branca e a baba.
Feito demência ou feito um susto, grande que escorreu pela sala e depois pela
manga da camisa, desabotoou as calças e pensou que era tarde demais para eles,
para tudo deles. Que já não era nada. Bem menos. Foi um susto grande que
adquiriu a profunda certeza da incompreensão. Um susto tão grande aquele, e
derreteu a mucosa pelo avesso, sorria triunfante de toda verborrágica louca da
rainha, que corria corria para fora da cena. Urrava ainda, e afinal, olhou bem
dentro da pupila dela e gritou: covardia!!!! menos que isso, é um animal atado,
é a sensação de não pertencer nem aqui e nem lá. Verborrágico, bateu e gritou e
derrubou a mesa, plantas, cadeira, e babava colérico eu olhava e não encontrava
nada. Colérico, me olhou dentro do mais profundo da pele e do olho e disse que
tinha nojo, nojo nojo de animais domesticados. Que os meus gatos que fossem
pardos ou cinza, malhados, mas ainda tudo em mim era insuficiência e o dinheiro
sujo que ele enche os bolsos preencheriam um cu qualquer na rua, sem precisar
marcar hora. Dez vinte trinta cus pelas esquinas de qualquer centro de qualquer
cidade.
Espantada com a cena. Ela me traz imagens de outra cidade.
Como se ele tivesse pego uma memória minha emprestada e a partir dela escreveu
outra . A mesma luz sobre nós, o loiro do rapaz sobre o skate. Algo de absurdo
nas frases, que ele tecia destecendo, uma famigerada vontade de casser. De
fraturar cenas. Ele ligou no meio da madrugada. Dechirer as imagens, ele fez os pais o
trazerem de outra cidade só para me ver, o punho do casaco que ele mesmo
costurou, a linha cor-de-burro-quando-foge. Dechirer, e de correr na direção
contrária do que havia sido, desejo, e não-saber. Esfolando todos os gestos,
arranhando com ponta afiada as frases, ele descia vertiginosamente para a
brutalidade das formas, para os erros grosseiros da língua, ele queria chegar
no osso pálido, na nudez arcaica, como
se houvesse um lugar antes da polidez construída, que ele detestava. Foi a
primeira vez que tivemos juntos nossa pequena morte. Sem coreografia definida,
sem saber o que aconteceria depois. Casser. A recusa levada ao último contentamento. A
recusa como arma de vencer a si mesmo e antes de tudo, matar o monstro que ele
alimenta de olhos abertos. Abertos para a escuridão de tudo o que Só ele sabe o
que suportou, antes. Os seres frágeis, todas as asas quebradas antes mesmo de poder
crescer. Mas os olhos também se fecham de repente se fecham para ela, quando a luz
é uma memória esquecida. Meu primeiro ensaio de opacidade, quando você toma
parte no vazio das cenas. Ser arremessado e rodopiar pelos ares como uma pedra
lançada com força. Afundo os dedos no
negativo grosso, denso que vai em direção ao chão. A imagem. São memórias do vazio, ou só alguma
coisa que inventei, e de tantos anos atrás. O negativo é a dúvida das cenas.
São cenas aquecidas e amorosas e elas não encaixam nem na distância e nem nas
escolhas. Uma alavanca, um acontecido sem rostidade. Uma repetição tardia, e
vejo através do vídeo, a tarde quente na rua. O ônibus mais tarde, à noite em
direção ao inferno da cidade. Ele correu atrás do ônibus para dizer tchau uma
segunda vez. Ele sorria menino, e eu não vi, foi ele que narrou a cena depois. Era
o outro dia, e estávamos felizes. São
memórias e elas só encaixam na dilatação do espaço e na sensação de dechirer,
casser, quando ele recusou. É a mesma cena, a mesma tarde de calor, os olhos
também eram verdes, também ele forjava doçura, e também ele marcou hora e lugar
e depois de um ponto, de beira e altura, de quase, ele nunca apareceu. Arremesso
ao nada, as imagens dechirer, casser todas elas recusadas no âmago. Alguém que
rompe com a própria vontade, alguém que abandona algo que não sabe viver sem,
para fazer gozar da ferida? Uma infinita recusa, uma infinita impossibilidade
da imagem que ele me deu. Ele me
deu um tanto de doçura, mas não percebi que ele mal podia suportar, e que logo
depois de me mostra-la, ele me mandou embora com ela. Me arremessou pelos ares
com força para ver se partia. Como se eu pudesse levar embora sua humanidade
mais dolorida. Ele me contou dela também. Do mais escuro, e mais pesado peso. Para mais
tarde, no fim. Duas horas sentados
frente a frente sem nenhuma palavra por dizer. Esperamos. Não tínhamos
palavras para pronunciar. Fui embora com a sua doçura abandonada nas mãos. E
passei muito tempo sem entender.
Essa imagem do vídeo passou na frente da casa dele. A mesma
periferia dura e vazia, onde ele me mostrou o assassino da menina com um fio de
telefone. Ele me mostrou o destino delas, as meninas virando mulheres antes mesmo
de saírem da infância lá, na periferia, onde imperava a brutalidade e o
silêncio. Onde ele aprendeu a esconder toda sua doçura para sobreviver. Hostil
é, e vê se cresce logo, menina, ele me escreveu mais tarde. Mas descobri depois
que foi ele quem nunca soube crescer. Nunca pode crescer. Um dia encontrei ele
na rua, no centro da minha cidade, esfarrapado. Tinha vindo pegar remédios que
controlavam alucinações. Ele sorriu magro e desajeitado, com o vocabulário mais
precário, e mais órfão do que antes. E eu só soube depois, que alguém tinha
morrido. Ele nunca respondeu. Eu nunca voltei para aquela periferia. Mas carrego
ainda? A doçura, tão maltratada, que ele me deixou?