quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Para não dizer que não falei da rosa



Espantada com a cena. Ela me traz imagens de outra cidade. Como se ele tivesse pego uma memória minha emprestada e a partir dela escreveu outra . A mesma luz sobre nós, o loiro do rapaz sobre o skate. Algo de absurdo nas frases, que ele tecia destecendo, uma famigerada vontade de casser. De fraturar cenas. Ele ligou no meio da madrugada.  Dechirer as imagens, ele fez os pais o trazerem de outra cidade só para me ver, o punho do casaco que ele mesmo costurou, a linha cor-de-burro-quando-foge. Dechirer, e de correr na direção contrária do que havia sido, desejo, e não-saber. Esfolando todos os gestos, arranhando com ponta afiada as frases, ele descia vertiginosamente para a brutalidade das formas, para os erros grosseiros da língua, ele queria chegar no osso pálido, na nudez  arcaica, como se houvesse um lugar antes da polidez construída, que ele detestava. Foi a primeira vez que tivemos juntos nossa pequena morte. Sem coreografia definida, sem saber o que aconteceria depois. Casser.  A recusa levada ao último contentamento. A recusa como arma de vencer a si mesmo e antes de tudo, matar o monstro que ele alimenta de olhos abertos. Abertos para a escuridão de tudo o que Só ele sabe o que suportou, antes. Os seres frágeis, todas as asas quebradas antes mesmo de poder crescer. Mas os olhos também se fecham de repente se fecham para ela, quando a luz é uma memória esquecida. Meu primeiro ensaio de opacidade, quando você toma parte no vazio das cenas. Ser arremessado e rodopiar pelos ares como uma pedra lançada com força.  Afundo os dedos no negativo grosso, denso que vai em direção ao chão.  A imagem. São memórias do vazio, ou só alguma coisa que inventei, e de tantos anos atrás. O negativo é a dúvida das cenas. São cenas aquecidas e amorosas e elas não encaixam nem na distância e nem nas escolhas. Uma alavanca, um acontecido sem rostidade. Uma repetição tardia, e vejo através do vídeo, a tarde quente na rua. O ônibus mais tarde, à noite em direção ao inferno da cidade. Ele correu atrás do ônibus para dizer tchau uma segunda vez. Ele sorria menino, e eu não vi, foi ele que narrou a cena depois. Era o outro dia, e estávamos felizes.  São memórias e elas só encaixam na dilatação do espaço e na sensação de dechirer, casser, quando ele recusou. É a mesma cena, a mesma tarde de calor, os olhos também eram verdes, também ele forjava doçura, e também ele marcou hora e lugar e depois de um ponto, de beira e altura, de quase, ele nunca apareceu. Arremesso ao nada, as imagens dechirer, casser todas elas recusadas no âmago. Alguém que rompe com a própria vontade, alguém que abandona algo que não sabe viver sem, para fazer gozar da ferida? Uma infinita recusa, uma infinita impossibilidade da imagem que ele me deu.                                       Ele me deu um tanto de doçura, mas não percebi que ele mal podia suportar, e que logo depois de me mostra-la, ele me mandou embora com ela. Me arremessou pelos ares com força para ver se partia. Como se eu pudesse levar embora sua humanidade mais dolorida. Ele me contou dela também.  Do mais escuro, e mais pesado peso. Para mais tarde, no fim. Duas horas sentados  frente a frente sem nenhuma palavra por dizer. Esperamos. Não tínhamos palavras para pronunciar. Fui embora com a sua doçura abandonada nas mãos. E passei muito tempo sem entender.
Essa imagem do vídeo passou na frente da casa dele. A mesma periferia dura e vazia, onde ele me mostrou o assassino da menina com um fio de telefone. Ele me mostrou o destino delas, as meninas virando mulheres antes mesmo de saírem da infância lá, na periferia, onde imperava a brutalidade e o silêncio. Onde ele aprendeu a esconder toda sua doçura para sobreviver. Hostil é, e vê se cresce logo, menina, ele me escreveu mais tarde. Mas descobri depois que foi ele quem nunca soube crescer. Nunca pode crescer. Um dia encontrei ele na rua, no centro da minha cidade, esfarrapado. Tinha vindo pegar remédios que controlavam alucinações. Ele sorriu magro e desajeitado, com o vocabulário mais precário, e mais órfão do que antes. E eu só soube depois, que alguém tinha morrido. Ele nunca respondeu. Eu nunca voltei para aquela periferia. Mas carrego ainda? A doçura, tão maltratada, que ele me deixou?


(Escrito em 16 junho 2014, Paris)

Nenhum comentário:

Postar um comentário