segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Lapso II, ou

Ou Notas de Diário II,


 Meu ultrapassamento

Me guarde amor, dentro das teclas do piano e ali, me esconda. Em silêncio não repita, não repita, não repita mais essas palavras, essa desconexão tardia a fome não pertence ao corpo. Essa fome que eu sinto não é tua, não é dela, não é de lugar nenhum. É do navio que parte em direção ao nada, é a nostalgia da beleza que dura cada instante. E que eu só soube perder mais a cada hora. E o tudo que eu te dei de amor, é só nau-frágil. É o que não há corpo para tocar. É só uma coisa louca que inventei. E que não tem sentido. É uma coisa de brisa de mar, de beira de praia, de amarelos e farelos de pedras de milhões de anos de partículas. É um desfazimento, é um desfeito um desencontrar excesso excessivo que a própria palavra cria, a linguagem que escreve. Não sou eu. São essas letras. E o que elas dizem é uma sombra de árvore na calçada de um dia muito quente de janeiro no hemisfério sul do mundo.

26.01.2015


quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Lapso, ou

Notas de Diário,

20.12.2013
Continuo sem saber nada deles. Pobres homens? Que têm um medo terrorífico de tentar. Desejo que encontrem amor, leveza, momentos luminosos.

22.12.2013
Passei o dia ontem esperando o nada. Chorei muito antes de dormir. Sonhei a noite alucinando a presença. Fui até o tempo antigo dos romanos e já lá a aridez estava presente.

16.12.2013
0h21
Ando no escuro. Paris em passos se aproxima e enlouqueço de medo de não ver.

12.12.2016
Remexi nos mortos. Nela. Havia milagre em nossas mãos. Não sabíamos. Existimos, simplesmente. Pedaços de estrelas no chão.
Hoje. Uma vida que nasce a cada hora. Mesmo que eu não possa quase nada, respiro e penso, que eu quero e digo sim para mim e para o mundo. Estou sempre à espera de nascimento.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Constelação

Ou, "no meio de tanta vaga impossibilidade"

Branco, branco, brancura.
O Laranja. E dois pontos
pretos miúdos.

                   (março, 2013)


Sobre amar imagens, Clarice:

TENTAÇÃO
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.


Clarice Lispector. in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Variação nº 5

Cobre e cosmos em combustão
Alteram as linhas de fronteira e
denunciam que a vida está em chamas

Entre a queimadura e a ferida

Um poema feito de uma gota de sangue entre
grãos de areia
E a certeza da desorientação do tempo.

domingo, 22 de maio de 2016

Ainda, e o que me resta

I
Antes,
ou sobre um verso torto.
Para alguém que quis
Sair
INCÓLUME
Se possível,
Cego, Surdo e Mudo
do nosso encontro,
mas não pode.
E depois morreu
um milhão de vezes.

II
Escrever é habitar essa linha tênue
(vingança da perda - waly salomão)
Entre
O Amor e a Revolução,
Resto e Resistência,
Amar
Lutar
(Escrever), ainda,
Como uma última forma de coragem.

III
Os beijos apaixonados e as
sardas
Gosto de boca e da carne da boca. Cinema e      
ultrapassamento
AmorDesamorAmor e Voragem
Vértice e Abismo.
Mãos que poderiam reter,
nascimento, desgoverno,
alguém gritou muito alto
VIDA, VÉSPER, MAGNA-MARINHO
e aprendeu a amar girassóis e
o sal das lágrimas.

IV
O pudor das estrelas não as impede de brilhar.