domingo, 4 de abril de 2010

"Uma história para um menino grande

A estória era como qualquer estória.
No fundo ele era ainda uma criança que a memória insistia em carregar. E poderia começar assim: Era uma vez um menino como qualquer outro menino. A mãe levava ele ao teatro nas tardes de domingos ensolaradas. Ela usava luvas brancas, daquelas até o cotovelo. Com certeza também usava chapéu, talvez um vestido leve, esvoaçante. Como a imagem que flutua nas suas lembranças. E seguia com ele pela mão. Ela era linda, como só as mães sabem ser, ele se sentia importante. Ainda hoje sente o calor daquela mão na sua. Aquele calor que só se sente na infância.
O pai queria que jogasse futebol. A mãe queria que fosse um liberal, um intelectual. Motivações de classe média. É preciso subir. É preciso ser. Talvez ter, mas não é o mais importante. Importante é ser importante. O pai comprava enciclopédias. Para ser craque é preciso ter talento. Em caso de dúvida, melhor estudar, não se anular.
A mãe. Entre panelas, pratos, panos, pó, fraldas, não mais a mulher, a mãe. A solidão. A solidão de noites não dormidas. De horas não compartilhadas. Solidão de ser único. Todos os grandes planos de um dia jogados, varridos, espanados, lavados. Luvas penduradas. Ela encosta a cabeça na janela e olha o tempo que poderia ter sido. Olha o garoto que corre, o cabelo encoracolado, um olhar doce, o sorriso que transforma e que cativa. O mesmo sorriso do pai. Lute garoto. Se você não chegar lá seremos todos derrotados. Quando foi mesmo que aconteceu? Um olhar que parou, um sorriso lindo. Um jeito de quem não quer nada. As pernas tortas. E as vontades mudaram de cor. Ele está ali, jornal na mão. A dúvida não chega a se instalar. A cena ainda aquece. Ela serve a comida no prato. É a rotina. Qual será a proporção do feijão com arroz?
Ele não sabe. Não precisa. O radinho no ouvido, volume total, o comentarista enlouquecido. A vibração. Depois a televisão. Todos os finais de semana do planeta. O futuro quer repetir o passado.
Ela já não leva ele pela mão. O lugar está vago. Muitos anos se passaram. É a decisão da indecisão. As mãos são muitas. Ela tem grandes olhos verdes. Não sei. Ou azuis. Ela descodifica. Decifra. Atordoa. Ela está fora de foco. Fora do sonho. É aquela loucura que chega de mansinho e fica até ao amanhecer. O sono não vem. É a tesão. É tudo fora de tom. "Il vaut mieux êntre aíme d'un amour fou que pas de tout" (é melhor ter um amor louco do que não ter nenhum).
Procura-se uma mão. Não mãe. É preciso enquadrar o sonho. Focar o desejo tão nebuloso. Fixar a imagem. É a busca.
Ela quer um amor tranquilo de uma cama desarrumada. De um olhar perdido na janela. Uma criança correndo no jardim. A loucura não está na ordem do dia. Melhor fugir. sair do caminho. Ah, menina, ele vai te amar sempre apesar da distância. Melhor dormir. Não sentir o calor daquela boca. Amanhã quando ele acordar, tudo será passado. Será que será bom lembrar? Melhor esquecer. Melhor seguir. Controlar. Afinal é um direito de cidadão.
Na janela um pedaço de sol chegando, mas não chega a aquecer. Tudo entra em foco. As luzes se acendem. Hora do intervalo. É hora de sair de foco. De deixar a paixão para a próxima geração. Vida breve sem até breve. Na mão outra mão. Na memória uma estória. Um amor que fica. Num repente tão juntos que se fundem, noutro irremediavelmente perdidos um do outro como um momento que passou. É a perda. E dói.
Um pedaço da gente que fica pelo caminho. Duas vidas, tempos diferentes. Talvez um tropeço de duas dimensões.
Silêncio. Ele escuta.
Só se ouvem soluços."

(Rita Maria Fricke)

texto escrito pela minha mãe, descoberto por mim ainda na infância, me revelando um rosto, dEla. Texto que me fez uma marca, talvez a da escrita, num feminino.

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