[Para Mathieu Wainsten]
Ainda acordo nas manhãs com vc no olhar. Acordo as manhãs. E limpo, escavo o ar. Penso, sua vida, tudo o que vive, pensamentos. Às vezes nossos olhos se encontram na distância, e eu fico solta sobre essa linha muda. Não faz nenhum sentido guardar os livros por aqui. Não faz nenhum sentido acomodar a vida futura aqui. Mas você, único, e ainda assim, capaz de maltratar, caso seja necessário. O seu amor é bonito, a dedicação sacrificial e muda, muda muda nos seus olhos doces, e ao mesmo tempo lá, inacessíveis, voláteis, um corpo que convulsiona mudo sobre a cama.
Acordo as manhãs
Levantei e ainda era escuro, ritual exíguo, esse, que cumpro sob a proteção das estrelas, o chão sempre um pouco úmido, tenho esta tarefa a cada despertar. Eu saio da cama e vou em direção a porta, abro e respiro o ar fresco do noturno, espio as sombras as quais não distingo bem, silhuetas orgânicas crescem às vezes, envolvem o horizonte como se fechassem de repente todas as portas. Nessa hora me atravessa a garganta um ligeiro terror que pousa e arranca acelera meu coração, logo de partida. Munido então, dessas certezas da escuridão, sua beleza, seu cheiro frio e a cortante agonia, esforço faço caber na mão, arqueando os dedos em direção as bordas delicadas desse mistério, agito os braços energicamente no ar, sacudindo a rouquidão do mundo, o meu mutismo, e o ponto negro bem no meio da pupila. A noite se agita, tremeluzente, escorre de leve e por fim, vencida, densa matéria se torna quebradiça, e se esfarela inteira. Faço um último gesto, mais preciso e mais grave e as últimas partículas se vão pelos ares. Deixo o movimento cessar leve e observo novos tons que se formam no horizonte. Começa azul escuro, depois fica azul claro e depois rosa, rosa quase cintilante, pontos fracos de luz brilham novos, eles nascem frescos, trazem consigo o ar molhado, a lembrança no corpo, o noturno em despedida. A cada noite minha sou levado outra vez, e outra vez e outra vez repito este gesto de acordar as manhãs.